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Machado de Assis – O historiador do cotidiano

O talento, a inquietação, a ironia, o bom humor e a modéstia de Machado para contar as histórias de um povo e de um tempo me emocionam

16/06/2021 às 08h52
Por: Redação Fonte: Acreaovivo.com
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Machado de Assis
Machado de Assis

Por Renata Dal-Bó

“Sabe o leitor o que lhe trago aqui? Uma pérola. Não acredita? Já esperava por isso”. (30 de janeiro de 1885)

Era com esta intimidade que Machado dialogava com o leitor e com seu tempo. Por mais de 50 anos publicou suas crônicas nos jornais do Rio de Janeiro, fazendo um registro do cotidiano e abordando as questões relevantes do Brasil Império e Brasil República, deixando em cada uma delas sua marca registrada: a sutil ironia.

“Um recente livro estrangeiro, relativo ao nosso Brasil, dá-me ensejo pra dizer aos leitores que, se eu datei do Rio de Janeiro a minha última crônica, se faço o mesmo a esta e às futuras, é porque esse é o nome histórico, oficial, público e doméstico da boa cidade que me viu nascer e me verá morrer, se Deus me der vida e saúde.” (21 de julho de 1878)

E assim aconteceu, filho de um pintor de paredes mulato e de uma lavadeira, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu pobre, no subúrbio carioca, em 1839. A vivência nos jornais transformou o garoto de subúrbio num homem da cidade. O grande tema de toda a sua obra foi justamente a vida do Rio de Janeiro, cidade em que viveu até sua morte, em 1908. Na época, o Rio de Janeiro era capital política e cultural do Brasil e, em suas crônicas, Machado fazia reflexões sobre seu dia a dia e sobre a alma de seus moradores. Todos os acontecimentos da cidade eram registrados em sua pena: espetáculos artísticos, disputas políticas, fatos econômicos, relações afetivas e sociais. Um verdadeiro historiador do cotidiano!

Em uma crônica de agosto de 1876 constata, preocupado, o alto número de analfabetos na população brasileira: “publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se colige que 70% da nossa população não sabem ler. (...) 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram; sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha – por divertimento.” Incrível como, de certa forma, sua crônica permanece atual.

Numa outra crônica, Machado fala da Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871: “Esta lei foi um grande passo na nossa vida. Se tivesse vindo uns trinta anos antes, estávamos em outras condições”. E, em seguida descreve o comentário de um homem que se recorda dos “bons tempos” quando se “via passar um preto escorrendo sangue, e dizia: ‘Anda diabo, não estás assim pelo que eu fiz!’ – Hoje...” Machado termina a crônica com sua característica ironia: “E o homem solta um suspiro, tão de dentro, tão do coração... que faz cortar o dito. Le pauvre homme!”

Uma de minhas crônicas preferidas é quando Machado decide, com muito bom humor, compor umas “certas regras para uso dos que frequentam o bonds”. Compartilho aqui uma delas:

“As pessoas que tiverem morrinha [o famoso cecê] podem participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro.”

Machado de Assis, nome maior de nossas letras, considerado também um dos grandes escritores da literatura mundial, era um homem modesto: “sou apenas um pobre diabo, condenado ao lado prático das coisas; de mais a mais míope, cabeçudo e prosaico.”

O talento, a inquietação, a ironia, o bom humor e a modéstia de Machado para contar as histórias de um povo e de um tempo me emocionam. Grande Machado!

Fontes: https://www.escrevendoofuturo.org.br/caderno_virtual/etapa/machado-de-assis-o-cronista/; Crônicas Selecionadas: antologia/ Machado de Assis. São Paulo: Marin Claret, 2009.

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