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Cultura Misteriosa

Clarice Lispector – Escrevo, logo existo

A escritora francesa Hélène Cixous declarou que Clarice Lispector era o que Kafka teria sido se fosse mulher

02/06/2021 às 21h01
Por: Redação Fonte: Acreaovivo.com
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Clarice Lispector – Escrevo, logo existo

Por Renata Dal-Bó

“Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém, provavelmente minha própria vida” (Clarice Lispector)

Começo a crônica de hoje com a citação acima, pois acredito que ela representa o que realmente significava a escrita para Clarice Lispector.

Em 2020, comemorou-se o centenário desta que é considerada uma das maiores escritoras do Brasil. Desde então, penso em escrever uma crônica sobre ela, mas, só agora, depois de ler a brilhante biografia “Clarice”, escrita por Benjamin Moser, sinto-me em condições para falar desta figura mítica das letras brasileiras. Para entender a escrita de Clarice é preciso entender Clarice, e isso não é tarefa fácil, pois nem ela própria tinha uma clara ciência de si, deixando muitos questionamentos sem respostas.

“Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. O chamado para a escrita de Clarice sempre foi interno, vem de sua necessidade de autoconhecimento, de se encontrar no mundo e chegar mais perto de sua vertiginosa essência. Clarice era o centro de seu processo de escrita e ampliava seu conhecimento de mundo por meio do exercício da linguagem. Talvez por isso tenha sido considerada uma escritora hermética, de difícil compreensão.

Seu ar indecifrável fascinava e inquietava todos os que a encontravam.  A escritora francesa Hélène Cixous declarou que Clarice Lispector era o que Kafka teria sido se fosse mulher. Carlos Drummond de Andrade escreveu quando Clarice morreu: “veio de um mistério, partiu para outro”. A própria Clarice escreveu uma vez: “sou tão misteriosa que não me entendo”. Na verdade, Clarice podia ser conversadora e acessível com a mesma frequência com que era silenciosa e incompreensível. Talvez por isso mesmo tenha se tornado uma lenda. No entanto, conforme Moser escreve, ela nunca perdeu inteiramente a esperança de ser vista como uma pessoa real e sempre protestou contra sua própria mitologia. Num artigo de jornal que escreveu exclama: “O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era órfã de mãe”.

Filha de imigrantes judeus, Clarice nasceu na Ucrânia, mas veio para o Brasil ainda bebê.  Teve uma infância de privações, marcada pela dificuldade de adaptação da família ao Brasil e pela morte precoce da mãe. Certamente suas personagens coabitavam em seu ser e, por meio de sua escrita, Clarice levantou questões existenciais que a inquietaram por toda sua vida.

Ler Clarice Lispector é uma experiência muito única e pessoal, pois ela nos convida a refletir sobre os paradoxos da vida e sobre os seres contraditórios que nos habitam. Em uma palestra, em 1959, Clarisse definiu sua escrita da seguinte maneira: “Escrever não me trouxe o que eu queria, isto é, a paz. Minha literatura, não sendo de forma alguma uma catarse que me faria bem, não me serve como meio de libertação. Talvez de agora em diante eu não mais escreva, e apenas aprofunde em mim a vida. Ou talvez esse aprofundamento da vida me leve de novo a escrever. De nada sei”.

“A Hora da Estrela”, último livro escrito por Clarice, em 1977, pouco antes de sua morte, foi o primeiro que li. Nele, além de Macabéa, uma mulher que não reconhece nem sua própria infelicidade, a linguagem faz o papel de personagem. E emergem alguns questionamentos: “é a linguagem que funda a realidade? a palavra distancia ou aproxima pessoas? dispor da palavra é um dom ou uma maldição?”

Se Clarice não tinha essas respostas, quem sou eu para tê-las? De nada sei.

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