Por Jairo Lima
A história antiga nos reserva exemplos radiantes de realidades que extrapolam a linha do tempo e nos chegam em diferentes formas. As antigas arenas e os seus jogos da morte, por exemplo, serviam como cenários para distrair a população acerca das suas reais necessidades. Esses dispositivos geravam abstrações capazes de iludir e afastar a realidade perversa dos olhos do povo. A pantomima completava-se com a distribuição de pães aos convivas. Daí surgiu a expressão que abriga governos e políticos incompetentes e populistas: a política do pão e circo.
De um lado, desviar o foco e a atenção do povo – o circo. Na outra ponta, atender as suas necessidades primárias e fugazes sem, contudo, resolver o problema – o pão. Enquanto esse mecanismo perdurar, reformas estruturantes e capazes de reduzir as desigualdades são postergadas. Enquanto a diversão estreita prevalece – no circo, o caminho de retorno para casa – a realidade – fica mais distante e difícil. Enquanto a fome passageira – o pão – adormece a fome em poucas mordidas, o prato da justiça social segue vazio e desaparece como fumaça ao vento.
Ao ver os “donos do poder” em seguidos desfiles em vias públicas e a sua plateia inebriada por um discurso despótico e infantilizado, recordo da gente nas arquibancadas das arenas aguardando o espetáculo da morte alheia. Como no passado, a orgia populista tangencia o autoritarismo para tentar validar o indefensável. Como no passado, muitos aplaudem sem compreender o sentido exato daqueles atos. E como no passado também, aqueles que não aplaudem o circo e os seus palhaços são jogados das arquibancadas para o palco da desgraça. Mas, diferente do passado, a hora do pão não chega para a torcida. Mesmo o pão mofado não é partilhado. O manjar é servido para poucos. O alimento que sobra em abundância deriva das mentiras recicladas todos os dias.
E assim vamos nos esquecendo dos muitos brasileiros incapazes de suportar e de seguir a jornada. Muitos ficaram pelo caminho. Outros tantos foram “empurrados” para baixo da linha da miséria e o país volta a frequentar o mapa da fome. Dados publicados hoje pelo Jornal Folha de São Paulo nos mostram o tamanho dos desafios solenemente ignorados pelos tutores do espetáculo e pela plateia que admira o picadeiro. O Brasil contabiliza quase 450 mil mortos pela covid-19; 14,4 milhões de desempregados; 14,5 milhões de miseráveis; e 19,1 milhões de famintos. Tudo isso sem contar com a falta de vacinas para nos proteger, com a incapacidade de o sistema de saúde atender a demanda de necessitados e os prejuízos incalculáveis para a educação e a formação dos nossos jovens.
O desmantelamento das políticas públicas sociais e do amparo à porção mais vulnerável da população não parece capaz de sensibilizar o atual ocupante da cadeira da presidência e a sua trupe. Não há registros de planos ou programas no sentido de oferecer aos brasileiros pelo menos o alento de sonhar por dias melhores. O Estado não parece capaz de oferecer à população ações efetivas para garantir segurança alimentar, cidadania e respeito à vida. Direitos básicos à dignidade humana são negados. E apesar do circo escangalhado e da lona cheia de buracos, o show continua em sua dolorosa jornada insólita. Afinal, como dizem os poetas contemporâneos e não alheios à história, o espetáculo não deve parar. O desfile, portanto, precisa continuar. Mas não tem nada não, tenho o meu violão. E no meu canto, aguardo pelo menos pão para aplacar a fome incontornável de justiça.
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