O conto a seguir, de autoria da ajebiana e escritora acreana Cecília Ugalde, foi premiado em 3º lugar no 2º concurso de literatura acreana Garibald Brasil - 2012 publicado também na obra "A outra face da colheita”, de 2019, prefaciado pela ex reitora da UFAC Olinda Batista Assmar.
Vamos conferir?
A MORTE SE ENGANOU
Por Cecília Ugalde
A casa dela nunca foi uma casa só de dois. Quando casou já levou a mãe a reboque. Considerava que tinha muita sorte de ser a filha caçula e, portanto, ter a companhia da mãe sempre e todos os dias. Assim, quando os netos foram chegando ela mesma os recebia, não havendo necessidade de andar por aí em busca de parteira. Com dois partos de gêmeos, logo se fizeram sete, os filhos, já agora em número de dez a família. Mas parecia que havia chegado ao fim, a rama. Há cinco anos ela não engravidava e até se atrevia a dizer que os filhos estavam quase criados.
Almira era uma mulher como poucas: cuidava da casa, da roça, da família e ainda lhe sobrava tempo para costurar e bordar. Que seus lençóis, toalhas de mesa, panos de copa e tapetes eram sempre bem trabalhados e tudo a mão. Graças à mãe que lhe ensinara a fazer as prendas domésticas. Descendente de árabe, dona Alzira gostava das coisas sempre bem coloridas, porque segundo ela traziam bons fluídos e chamavam a alegria e a prosperidade. E uma casa alegre é sempre uma casa feliz.
Era sábado. Almira desembaraçava os cabelos da filha enquanto ouvia a mãe contar que tinha sonhado com um imenso jardim florido, mas apesar de bonito, ela tinha achado estranho. Não no sonho, quando acordou. As flores eram todas amarelas e as plantas donas das flores tinham o mesmo tamanho. Parecia incrível, mas eram todas iguais. Mal terminou de ouvi a mãe contar o sonho, Almira já começou a sentiu uma dor, que foi aumentando até o ponto de ela entrar em desespero e começar a gritar. Almira rolava na cama enquanto a mãe lhe massageava o baixo ventre, para desfazer o bolo nos intestinos que supostamente lhe causava a dor. O chá de alfavaca não fazia efeito e vem outro chá e mais outro, sem nenhum resultado. Almira para de respirar. Corre daqui, corre dali, passa álcool nos pulsos, dá também para cheirar...em vão. Almira está morta.
O chororô foi grande demais. Os três tiros atrás um do outro era o aviso de que alguém havia morrido. A vizinhança chega e os gritos de lástima da filharada aumentam. Crescem numa altura tão grande que era possível ouvir a quilômetros de distância. Almira ainda nova, Almira bondosa, cuidadosa, boa mãe e esposa, tudo proferido tão alto que a Senhora da passagem, ouviu e começou a questionar por que era Ela a encarregada de causar tanta dor? Tanto sofrimento? Uma mãe de sete filhos morre assim, sem mais nem menos e como fica tudo? Morte ingrata! Traiçoeira! Ela estava boazinha e nem era uma mulher doente. E as grossas lágrimas da mãe dela, se culpando por não ter conseguido salvar a vida da filha.
Mas Morte é Morte e ninguém pode fazer nada, pois quando o cordão de prata é cortado, acaba-se a ligação do espírito com o corpo. “O que é do pó volta ao pó e o espírito volta a Deus que o criou,” assim reza as Escrituras. Mas era Ela quem tinha a tarefa de cortar aquela ligação e depois nada fazia para remediar os sofrimentos dos que ficavam, porque isso era função do tempo. Ele que tratava de secar as lágrimas e fazer a dor não doer mais.
Mas perecia ter algo errado... os blocos de notas que recebia, além de conter nome e endereço certinho do “próximo”, também especificava o tipo de Morte. O de Almira dizia: “Morte sem dor”. E a coitada morreu gritando. Porém, isso não a incomodava, de qualquer maneira teria que morrer, que diferença fazia se com ou sem dor? O que lhe estava incomodando eram os gritos inconformados dos filhos, ora agarrados com a mãe, ora com as mãos puxando os cabelos. Aquilo era terrível e por conta disso, Ela não gostava do interior, só ia lá uma vez na morte. Gostava era das cidades grandes que visitava a cada segundo milhares de pessoas e nem tinha que ouvir todo aquele disparate. As pessoas quando choravam, o faziam baixinho, com certa compostura e alguns, os mais nobres, nem choravam. Pagavam uma carpideira para chorar pela família. Velório bonito! Todo mundo de preto, bem maquiado, falando baixinho, quitutes e mais quitutes... assim dava gosto visitar.
O caixão começou a ser feito, o velório triste segue-se noite adentro. Algumas mulheres cortam um lençol branco, para fazer a mortalha. Tiram as medidas, preparam a linha e as agulhas, que mortalha não pode ser costurada na máquina. Tem que ser a mão senão a morta não se salva. O marido, de quando em quando vai até a mulher morta, acaricia seu rosto, pega seus braços lânguidos, quentes ainda – Porque não esfria e fica dura como todos os defuntos? – Algumas vizinhas comentam que é porque morreu de repente e não deu tempo para a vida sair, ficando muita vida presa dentro dela
Já por volta das vinte e três horas, quando o sono domina o humano por dentre, fazendo o de fora dormir, pois o sono é semelhante à morte, às vezes nem percebemos e já estamos dormindo, a morta se levanta. Alvoroço total. Todos correm, erram a porta, batem-se uns nos outros, valendo-se de tudo que é santo e por algum tempo ninguém entende nada. Até que a curiosidade toma o lugar do pânico e voltam. Devagar, cabreiros, pé ante pé.
Almira sentada na mesa que estava sendo velada, começa a contar que estava percorrendo um caminho quando encontrou um velhinho que a mandou voltar, pois tinha havido um engano e quem tinha que fazer a passagem era outro membro da família. Dita essas palavras, cai morta novamente. As pessoas, ali presentes, tremerem de medo e pavor. Afinal, dessas coisas de morte ninguém entende. Ninguém sabe os critérios adotados por Ela para decidir quem vai agora e quem vai daqui vinte ou cinquenta anos. Busca-se álcool, esfrega os pulsos põe no algodão e dá para ela cheirar. Sacode, chama e Almira acorda como de um sono sem sonhos, pois do que havia dito, nada lembrava.
O velório transformou-se em festa. Mata-se galinha, faz-se comida e bota o disco no toca discos que era para se comemorar. Almira estava viva e o que era melhor, não sentia dor na unha. Tudo tinha sido um enorme vexame. Quem chegou atrasado para o velório, encontrou a festa e o marido de Almira disse que o capado estava no ponto. O dia seguinte era domingo mesmo, além disso, o fato de sua mulher ter escapado da morte, merecia comemoração maior que apenas a morte de algumas galinhas. Faz-se o fogo, bota água no tacho para ferver e pelar o porco, que se cozinha uma parte e se assa outra, já aproveitando as brasas.
O porco foi sangrado e o arrasta - pé segue-se madrugada afora. Uns, já suados, descem para que outros subam e possam também dançar. Que a sala é pequena e não cabe todo mundo de uma vez. Sete horas da manhã, Almira vai à rede da mãe para pedir que lhe auxilie com o chouriço. Chama... primeiro baixinho que a mãe tem sono leve. Depois mais alto, sacode a rede, lhe pega no braço... frio, rijo. Dona Alzira morreu sem dá um gemido.
A Morte se enganou com a grafia do nome: Almira, Alzira... tem-se que ler com bastante atenção para não confundir - Mas, para quem tem milhares de anos na mesma função, não foi nada agradável corrigir o engano.
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SOBRE A AJEB
A Associação das Jornalistas e Escritoras do Brasil – AJEB é uma instituição nacional cinquentenária e que tem uma coordenadoria no Acre, com o objetivo de reunir mulheres JORNALISTAS e ESCRITORAS para a divulgação de uma literatura produzida sob o olhar feminino, com foco na história da mulher acreana; e oferecer novas oportunidades para debates, estudos e pesquisas de temas de interesse feminino, com um discurso elaborado, da e pela mulher.
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