Vivemos um paradoxo nas organizações: quanto mais a tecnologia e a inteligência artificial invadem as estruturas e os processos, mais se torna necessário aquilo que só a inteligência humana pode fazer: compreender o funcionamento do ser humano e a dinâmica dos relacionamentos interpessoais.
E isso é, acima de tudo, uma questão de liderança.
Paradoxalmente, à medida que a automação avança a função de liderança se torna mais fundamental para a sustentabilidade das organizações, pois a função do líder é o que há de mais determinante tanto para a preservação da identidade da organização quanto para a obtenção de resultados e a realização de mudanças necessárias.
Obviamente essa importância da liderança cria novas demandas e responsabilidades que exigem do líder múltiplas e complexas capacidades. O problema é que muitas delas nunca foram ensinadas nem treinadas durante sua formação profissional.
A modernidade nos legou o paradigma do pensamento linear-cartesiano e as capacidades analíticas e mecanicistas que possibilitaram a especialização do foco e da ação, a classificação das partes e a reprodução automática de padrões. Isso proporcionou ao ser humano as capacidades necessárias para lidar com situações onde impera a lógica binária, facilitando a tomada de decisões diante de opções do tipo certo ou errado: qualquer um sabe que uma lâmpada que ilumina deve ser mantida, mas se está queimada deve ser substituída.
As capacidades profissionais empoderadas pelo pensamento linear-cartesiano são a análise e a execução. Toda educação formal está voltada para treinar os futuros profissionais a serem excelentes analistas e executores, a lidarem com processos, com objetos e com máquinas.
Ocorre que somos seres sociais em constante relação interpessoal. E as pessoas não são objeto, nem podem ser tratadas como máquinas ou trocadas como lâmpadas.
Embora a lógica binária (certo ou errado, on ou off) seja ideal para questões que envolvem as máquinas, ela é limitada para compreensão e resolução das dinâmicas e complexidades das pessoas. A pretensa objetividade do pensamento linear-cartesiano não consegue lidar com as motivações, as habilidades e as travas humanas que criam múltiplas posições além do certo ou errado.
Não falamos que uma máquina tem comportamento ou atitude incoerente, pois ela executa exatamente sua programação. Já as pessoas, embora também sejam programadas desde a mais tenra infância, é muito comum haver incoerência entre a intenção e o comportamento, entre a fala e a atitude. E num contexto coletivo de grupos e equipes, cujos membros tem origem e valores distintos, a questão se torna ainda mais complexa.
Sobre o paradoxo dos avanços e das limitações do pensamento linear-cartesiano Humberto Mariotti diz que a humanidade promoveu um desenvolvimento científico-tecnológico impressionante que proporcionou a solução de vários de nossos antigos problemas, mas trouxe também uma infinidade de outros, tão ou mais graves do que os anteriores. Carros potentes e ultramodernos ultrapassam 300 km/h, mas com o congestionamento das grandes cidades a velocidade média não ultrapassa 20 km/h no horário do rush.
No mesmo sentido Edgar Morin alerta que adquirimos conhecimentos extraordinários sobre o mundo, por outro lado, erro, ignorância, cegueira progridem simultaneamente, pois esse conhecimento é mutilante, incapaz de reconhecer e aprender a complexidade do real.
Então fica claro que precisamos incluir em nosso repertório outros paradigmas e novas capacidades. Nesse sentido, desde o início do século XX o chamado pensamento sistêmico tem favorecido uma compreensão mais real tanto da vida quanto das motivações e do comportamento humano. E com uma abordagem integralizada e interdependente, o pensamento sistêmico desenvolve as capacidades profissionais de planejamento (visão de contexto temporal e espacial) e comunicação (conexão entre os elementos).
É interessante observar como cada modelo atua diante do problema. Enquanto o paradigma linear-cartesiano foca e analisa as partes buscando identificar e substituir o elemento problemático/desajustado, o paradigma sistêmico observa o todo procurando identificar e compreender as reais premissas das relações entre os elementos do sistema.
Em todo sistema humano, seja na família, nas organizações ou na comunidade, as dificuldades sempre surgem e são sentidas na dinâmica das relações entre dois ou mais indivíduos. Os problemas não são pessoais, são relacionais.
Então é um equívoco querer compreender e resolver um problema sistêmico (seja a desconexão de uma equipe ou um conflito interpessoal) unicamente através do modelo linear-cartesiano, pois as capacidades de análise e execução sempre se limitarão à busca de um suposto elemento/indivíduo problemático, sem jamais alcançar a dinâmica relacional.
Já o modelo sistêmico nunca pergunta quem está errado. Aqui o interesse é descobrir as premissas sistêmicas que sustentam a dinâmica relacional entre os indivíduos. Em outras palavras, diante de um problema numa equipe ou de um conflito interpessoal o paradigma sistêmico busca identificar se no grupo existe propósito comum, se há clareza dos papéis individuais, se a comunicação é objetiva e confiável, se o dar e o receber estão equilibrados.
Voltando à questão da importância da liderança nas organizações, comumente profissionais dotados de excelentes capacidades de análise e execução se tornam líderes de equipes e, não raro, a despeito de sua dedicação e esforço não repetem na liderança o alto desempenho que conseguem individualmente.
Evidentemente que mesmo um excelente analista ou executor, habituado a performar individualmente com máquinas, processos e sistemas, na esfera da liderança necessitará ampliar suas capacidades profissionais de planejamento (visão de contexto temporal e espacial) e comunicação (conexão entre os elementos).
Isso demonstra a complexidade do exercício da liderança, exigindo a integração dos saberes do pensamento linear-cartesiano (análise e execução) e do pensamento sistêmico (planejamento e comunicação).
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Luciano Trindade
Advogado, Presidente da Comissão de Direito Sistêmico da OAB/AC
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