Há dias o Acre tem sido palco de acirrado debate sobre a contratação do goleiro Bruno pelo Rio Branco Futebol Clube. A polêmica se deve ao fato dele ter sido condenado em 2013 por planejar e participar do seqüestro e assassinato de Eliza Samúdio, cujo corpo foi esquartejado e jamais localizado.
Os que defendem sua contratação justificam que não há ilegalidade, já que ele teve a progressão de pena para o regime semiaberto e a ressocialização é uma política pública que deve ser incentivada pelo Estado e pela sociedade.
Os que são contra alegam que Bruno praticou um crime bárbaro e cruel contra a mulher que era mãe de seu filho. Além disso, o Acre já é campeão proporcional nas estatísticas de violência de gênero, sendo inadmissível que Bruno seja contratado e possa se tornar ídolo da equipe de futebol mais popular do Estado, o que poderia influenciar meninos e homens em ideias machistas e atos de violência.
A consequência imediata dessa polêmica foi a equipe do Rio Branco perder o único patrocínio que tinha. Mas me parece que a situação também exige reflexão sobre algumas questões que ainda não foram abordadas.
Primeiro, a polêmica não é um mal em si, desde que não seja radicalizada. Na verdade, o conflito de opiniões é a mensagem de que algo está em desordem ou desequilíbrio e precisa ser debatido. Muitas vezes a falta de discussão e o silêncio disfarçam um consenso de aparências.
Segundo, para que a polêmica tenha algum proveito precisamos abrir nossas mentes e corações para ouvir o outro. Geralmente os debates públicos só nos distanciam e não produzem qualquer resultado porque cada um só ouve a si mesmo e permanece limitado à sua visão, fechado no seu bunker. Somente quando nos conectamos com o outro podemos perceber interesses mútuos que nos aproximam.
Terceiro, o crime praticado por Bruno é um efeito drástico do patriarcado. Mas todos nós, homens ou mulheres, ainda que sutilmente, agimos sob a influência dessa mentalidade que nos impulsiona a querer dominar uns aos outros.
Estudos e pesquisas antropológicas revelam que há cerca de 6 mil anos as disputas por territórios fizeram com que as antigas sociedades matrilineares fossem substituídas pelo modelo patriarcal que impera até hoje e influencia os valores e as práticas sociais, políticas, econômicas e religiosas.
Na cultura patriarcal cada ser humano deseja dominar e receia ser dominado. Por isso privilegiamos o racional sobre o emocional e a competição sobre a cooperação. O sucesso é medido pela conquista individual, independentemente daquilo que acontece coletivamente.
O psiquiatra chileno Claudio Naranjo, referência mundial na investigação da mente humana, afirma que o mal da civilização é a mentalidade patriarcal, que se perpetua num modelo educacional no qual desde crianças somos treinados para a dominação de uns sobre os outros.
Esse é o vírus que ataca todas as consciências humanas, de crianças a adultos, de homens e de mulheres. Temos dificuldade de estabelecer vínculos adultos solidários e fraternais porque somos ensinados que o mundo é dividido entre o bem e o mal, “nós contra eles”, com inimigos a serem vencidos, adversários a serem conquistados.
O símbolo do patriarcado são as bandeiras, que surgiram para demarcar territórios conquistados. Desde então elas servem para estabelecer domínios e limites entre adversários.
A essência do patriarcado é a visão fracionada de mundo, com adversários a serem dominados. Daí que as formas de violência, desde as mais ostensivas às mais sutis (pressão, opressão, agressão, manipulação, sedução, rejeição, abandono, humilhação, etc) são conseqüências dessa luta pelo domínio de uns sobre os outros.
Por fim, cabe-nos refletir sobre empatia, a atitude de se colocar no lugar do outro, de calçar suas sandálias, de sentir suas dores e necessidades.
É importante ter em conta que o indivíduo não é isolado e suas ações geram impactos nos diversos grupos ou sistemas que pertence. Há situações em que um ato individual traz consequências para centenas, milhares ou até milhões de pessoas.
Uma pessoa comete um ato reprovável e toda sua família sofre vergonha pública. Um profissional tem um desvio de conduta e seus colegas de profissão sofrem desconfiança. Um imigrante comete um crime no país que o acolhe e toda comunidade de imigrantes sofre preconceito.
A empatia sistêmica olha para os que são considerados culpados sem nenhuma culpa.
Bert Hellinger (constelações familiares) alerta sobre o risco de ter uma empatia incondicional, tal qual o sentimento dos pais para com os filhos. Isso tolhe a responsabilidade do indivíduo e a necessária ação reparadora de todos os danos causados.
Empatia não é cheque em branco. Ela não retira a maior dignidade do ser humano: a autoresponsabilidade pelos seus atos.
É fato o alto índice de violência praticada por homens contra mulheres. Entretanto, é preciso reconhecer que nem todos são violentos. Ao contrário, em sua maioria os homens buscam ser pacíficos, gentis, cooperativos e solidários.
No entanto, toda vez que um homem pratica violência contra uma mulher o inconsciente coletivo recebe a informação de que os homens são violentos. O resultado é que, automaticamente, todos os homens caem na vala comum do julgamento moral coletivo e ficam rotulados como violentos, dominadores e irresponsáveis com suas mulheres e filhos.
Isso tem efeitos concretos. A experiência em trabalhos com grupos masculinos demonstra que quando os homens sentem que são prejulgados violentos eles se fecham num comportamento desconfiado, arredio e não cooperativo.
Por isso é preciso considerar que a visibilidade do goleiro Bruno e a repercussão de seu crime acarretaram enorme prejuízo à reputação dos homens em geral. Aqui ter empatia sistêmica significa reconhecer que Bruno causou danos aos homens pacíficos, gentis e não violentos.
E, na perspectiva de justiça restaurativa, Bruno deve ser confrontado com a necessidade de olhar para todas as suas vítimas e reparar todos danos que causou. Nesse sentido, questiona-se o que Bruno fez desde então para reparar o dano que causou à reputação da maioria dos homens com o preconceito de serem agressores ??
Para o direito positivo, construído no paradigma cartesiano-mecanicista, o Bruno pode ser contratado para jogar futebol. Mas na visão sistêmica seus atos produziram danos que até hoje sequer foram computados ou reparados, há vítimas que nunca foram lembradas e que ainda sofrem seus efeitos.
Nesse sentido, antes de voltar a jogar futebol e se tornar ídolo em razão pela paixão que jogo desperta, Bruno deveria ter empatia sistêmica com todos homens. De alguma forma deveria realizar algum trabalho que concretamente restaurasse o dano que causou aos homens não violentos, pacíficos, gentis e solidários.
Isso lhe daria a maior dignidade de qualquer ser humano: assumir a integral responsabilidade pelo faz, pelo preço que isso custar.
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Luciano Trindade é Advogado, Presidente da Comissão de Direito Sistêmico
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