Nos últimos anos tenho me dedicado a cursos, estudos e outras atividades que explicam como funciona o ser humano e permitem entender o seu comportamento individual e coletivo das pessoas. E uma das maiores compreensões é da influência de forças sistêmicas que geralmente não são vistas, como as memórias emocionais dos grupos familiares, a cultura e o inconsciente coletivo.
Então já estou um pouco treinado a identificar certas incongruências humanas e compreender suas causas. Mesmo assim, às vezes me deparo com esquizofrenias tão inexplicáveis que simplesmente tenho que aceitar minha incapacidade de compreensão.
Exemplo disso são duas notícias que nos últimos dias foram divulgadas nas páginas de notícia da internet: o congestionamento de escaladores do Everest e a cadeirinha para proteção de crianças no trânsito.
Sobre o Everest, sabemos que a cada ano aumenta a quantidade de pessoas que tenham chegar ao seu topo, com um custo de aproximadamente R$ 250 mil. Nos últimos dias foram publicadas diversas fotografias retratando filas e congestionamento dos escaladores na parte final da montanha de 8.848 metros de altura. E esse congestionamento tem contribuído para o aumento de mortes. Nesse ano já são 12.
Em geral, as pessoas que tem os R$ 250 mil necessários querem escalar o Everest para ter uma experiência transformadora, para ir além de seus limites, para se sentirem confiantes, poderosas, com autovalor.
E como muita gente quer isso, o congestionamento fica maior porque os escaladores se acumulam nos dias sem tempestades, quando é menos perigosos para subir.
Há um certo paradoxo aí. As pessoas querem uma prova de seu autovalor tendo uma experiência dificílima e perigosa, mas isso deve ser feito nos dias mais favoráveis. Porque não nos dias mais difíceis? Porque não nos dias impossíveis?
O certo é que, pelas filas e congestionamentos, escalar o everest virou um modismo para quem pode sustentá-lo. E, como todo modismo, cria no ser humano um desejo incontrolável de satisfazê-lo sem raciocinar. O padrão é: se todos estão fazendo, então eu também quero fazer, não posso ficar sozinho. A necessidade sistêmica de pertencer nos faz sentir leves e inocentes seguindo o grupo, ou pesados e culpados quando questionamos o grupo.
Daí as pessoas mansamente se encaixotam no padrão dos modismos. E cada vez menos se perguntam o que realmente querem para si. O que realmente tem valor e significado para si.
E em tempos de acentuada exposição nas redes sociais, cada vez mais todos inconscientemente fazem a mesma coisa, experimentam da mesma vista, do mesmo cheiro, do mesmo sabor e do mesmo som. O efeito manada vira regra em todas as camadas sociais e todas as esferas da vida.
Mas e a cadeirinha de retenção para proteção de crianças e bebês no trânsito, hein?
Estatísticas revelam que ela é responsável pela redução de aproximadamente 60% das mortes de crianças e bebês nos casos de acidentes.
E a notícia que temos é que a Presidência da Republica encaminhou ao Congresso projeto de lei que acaba com a multa para condutores que transportam crianças sem a cadeirinha de retenção. Haverá apenas advertência escrita.
Quando uma sociedade oficialmente toma a decisão de abrir mão de mecanismos eficazes de cuidado e proteção das crianças, quais os impactos sistêmicos que futuramente serão sentidos nessa sociedade? Faz algum sentido flexibilizar uma regra que comprovadamente salva vida de crianças?
Deve ter um sentido, eu que não entendo.
Sem comentários.
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Luciano Trindade é Advogado e Constelador Sistêmico
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