Por Socorro Camelo
Domingo em Brasília tem cheiro de grama, som de chorinho e vista para o improvável. É dia de tomar sol na pista e não estou falando de engarrafamento. Quem já foi ao Eixão no fim de semana sabe: ali a cidade desaperta a gravata, solta os cabelos e vira gente.
Hoje fui com minha filha Mariana, a sobrinha Isabelle (ou Belle, essa princesa de Belém que veio me lembrar o que é pertencer) e o marido Cassiano, que topa tudo e vai comigo até quando não quer, porque domingo é dia de estar junto, mesmo que seja embaixo de sol.
O Eixão fecha para os carros e abre para a humanidade. Abre para o Brasil real: aquele que dança, pedala, protesta, canta, come pastel com caldo de cana e acredita que um domingo pode mudar a semana.
E Brasília colaborou: dia lindo, sol firme, céu azul-piscina e aquele ventinho que só aparece para lembrar que, mesmo no calor, a cidade tem elegância. A gente se protege debaixo das árvores ou das sombrinhas improvisadas com lençóis floridos que, por ali, viram tendas, castelos e camarins de piquenique. Brasília também faz piquenique, com tudo que tem direito: toalhas xadrez, frutas cortadas com capricho, sanduíche de pão de forma e suco na garrafa térmica da vovó.
Teve quem levou mesas e cadeiras como quem muda de endereço: ali era o quintal de casa por algumas horas. Tinha também quem preferiu esticar uma canga e se jogar no chão para viver a plenitude da preguiça sob a batida de um pandeiro distante.
Caminhamos entre bicicletas, patinetes, senhores de sunga e samba no pé. Brasília vira Rio por algumas horas, com menos mar, mas com a mesma ousadia nos trajes. Teve forró, chorinho, uma moça vendendo brigadeiro com glitter (açúcar cristal é para os fracos) e até os Hare Krishna cantando mantra como se a paz mundial dependesse disso. Vai ver depende.
E no meio da trilha sonora democrática, de samba a rock, passando por mantras e chorinho apareceu ele: um buldogue francês. De bandana vermelha. E óculos escuros. Eu juro. Nos braços da dona, parecia ter a confiança de quem tem milhares de seguidores no Instagram.
E tinha também ela: uma moça de vestido leve e alma leve também, que dançou sozinha no meio da pista como se não houvesse plateia. E talvez não houvesse. Ou talvez a plateia fosse o céu.
Teve até uma senhora de cabelos grisalhos e olhar destemido que decidiu experimentar o patinete elétrico. Subiu, vacilou, riu de si mesma, se firmou e partiu pista adentro provando que, às vezes, tudo que a gente precisa é uma boa dose de curiosidade e um capacete.
Em outro canto, os Hare Krishna cantavam com devoção. Outro grupo protestava contra a exportação de animais vivos. Tinha vendedor de miçangas, oficina de pintura para crianças, roda de forró com chinelos empilhados no meio, e um senhor que vendia água com gás como quem oferecia vinho.
O Eixão é esse caldeirão democrático de cores, ritmos e histórias. E aí me pego fazendo o que sempre fiz desde pequena: olhando para cada um e inventando a vida que levam.
Aquela senhora com batom vermelho deve ter uma banda de jazz. O rapaz de chapéu Panamá, certeza que escreve poemas às escondidas. A moça do colar de pedras grandes? Astróloga. Ou professora de geografia alternativa.
Fiquei ali, parada no meio da pista, pensando em como aquilo tudo parecia um filme rodado no Cerrado. Cheio de personagens excêntricos, planos abertos e roteiros improvisados.
A moça do vestido florido era escritora, claro. O rapaz com mochila de lona e fone de ouvido era um cientista frustrado que agora compõe sambas. A senhora do patinete era aposentada e agora viúva e resolveu viver perigosamente depois dos 70.
Ali, também se pode ser o que quer. Cassiano virou menino de novo no patinete. Olhos brilhando, rindo alto, rodopiando como se o tempo tivesse voltado. Mari e Belle foram atrás, claro. Patinetaram também. Porque no Eixão é assim: a idade se distrai, o corpo inventa coragem e o domingo vira história.
Quando o sol começou a se despedir do Eixão, pegamos o rumo do Pontão. Porque Brasília, essa cidade de contrastes, também tem sua beira de lago.
O céu foi se avermelhando, as águas refletindo o fim do dia. Definitivamente há algo de mágico nessa capital que tantos não conhecem e que minha sobrinha agora quer mostrar à família de Belém nas próximas férias.
E que bom seria se todo mundo tivesse a chance de ver Brasília sem os vidros fumês do poder.
Brasília do domingo, da pista aberta, da senhora do patinete, do cachorro de óculos.
Essa sim, é a cidade que me faz ficar.
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