Por Socorro Camelo*
Ela se chamava Glória. E fazia jus.
Não era só um nome. Era um aviso. De presença, de brilho, de voz. Não havia como ignorá-la, ela abria espaço como quem sabe que o mundo sempre foi pequeno demais para quem sonha grande. Sua história não começa com uma câmera ou uma notícia. Começa com o silêncio que ela rompeu.
Assistir à série “Glória”, no Globoplay, é como ouvir uma canção de resistência cantada com elegância.
Cada episódio é um convite para relembrar que o impossível, às vezes, só está mal distribuído.
Glória não pediu licença.
Ela atravessou continentes, quebrou padrões e devolveu à TV um pouco da verdade que a vida guarda. E, principalmente, ouviu, com os olhos, com o corpo e com aquele humor que desarmava até os muros mais altos. Dizem que ela era “difícil”. Mas difícil mesmo era o país que a quis invisível.
Para estar na TV, Glória precisou ser mais que boa, precisou ser melhor que todos. Mais precisa, mais elegante, mais forte. E foi. Mas não do jeito que esperavam. Glória não seguia o script. Reescrevia. E se havia algo que ela não fazia, era pedir desculpas por existir do jeito que queria.
Vi o documentário como quem lê um poema raro: com um nó na garganta e um sorriso discreto de quem reconhece uma heroína disfarçada de gente. Glória ria alto, batia cabelo, usava ombreiras e respondia como quem não devia nada ao mundo e não devia mesmo. O mundo é que deve muito a ela.
Ela desafiou o óbvio, os manuais, os jurados do impossível. Era preta em um Brasil que não queria vê-la. E ela fez questão de ser vista, de salto, microfone e brilho próprio. Sabia o peso do que carregava, mas nunca se deixou reduzir a ele.
Glória não queria “ter tudo”. Queria ser tudo que lhe coubesse no peito. Teve muitos amores, poucos pudores, uma coragem escandalosa e uma mania bonita de se apaixonar pela vida.
Adotou duas meninas na Bahia e reescreveu sua história com doçura e responsabilidade, sem perder o sarcasmo. Era dessas que chorava em tribos africanas e gargalhava quando lembravam que ela fumou maconha na Jamaica em rede nacional.
Afinal, ser jornalista no Brasil é um pouco isso: uma mistura de coragem, falta de juízo e paixão incurável pela humanidade.
E jornalismo bom é aquele que cala para escutar o outro. E Glória escutava o mundo. Com os olhos, com o coração, com silêncio e sensibilidade.
Jornalistas como Glória, não morrem. Viram farol. Viram exemplo. Viram meme, e que sorte a nossa!
Esse documentário deveria ser obrigatório nas faculdades de jornalismo. E para nós, jornalistas em exercício, também. Porque ali se aprende o que não cabe no currículo: a dignidade de ser quem se é, a força de ir onde ninguém foi, o respeito pela história dos outros, e a coragem de não pedir licença.
Aprende-se, com Glória, o valor de acreditar em si quando o mundo inteiro duvida. Aprende-se o que é comunicar com verdade, com brilho nos olhos e com a alma inteira. Glória Maria é verbo no presente.
E continua ensinando a todos nós a mágica de existir com autenticidade, propósito, e um tantinho de rebeldia.
Socorro Camelo é jornalista.
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