O Brasil celebra o não à cultura

Por Socorro Camelo e colaboradores

Noite de Oscar

O Brasil levou o seu primeiro Oscar, como melhor filme internacional, por Ainda Estou Aqui, um libelo contra a ditadura militar, ainda que, aquele que seria o merecido prêmio para Fernanda Torres, não tivesse saído. Mas a festa do Oscar, que seria, como em anos anteriores, uma monótona cerimônia de celebração da indústria do cinema americano, dos blockbusters de alienação hollywoodiana, seguiu rumos inusitados e reveladores.

Ditadura

Importante que o filme brasileiro que trouxe o primeiro prêmio para o país fugisse do estereótipo do cinema brasileiro, ou violência extrema com denúncia de abuso policial, ou a crítica social por vezes prejudicando a narrativa ou a comédia deslavada, muitas vezes com forte conotação sexual ou com mensagem, no fundo, falsamente moralista. Ainda Estou Aqui é um filme contido, em que a violência absurda e injustificada vivida pela personagem e sua família se expressa por contundentes silêncios e pela coragem da resistência cidadã.

Mensagens

E a cerimônia do Oscar, em pleno domingo de Carnaval brasileiro, trouxe outros pontos de reflexão, mesmo em meio ao inevitável ufanismo norte-americano, expresso, por exemplo, na homenagem aos bombeiros que lutaram contra os incêndios na Califórnia. A cerimônia premiou um documentário feito pela união de um palestino e um judeu, denunciando os horrores de Gaza, em meio à proposta de limpeza étnica do governo dos Estados Unidos, para transformar a região de milhares de mortes em um resort. Uma mensagem forte de convivência e respeito.

Prêmios

O prêmio de melhor ator foi para um imigrante, que fez personagem também imigrante, que vive a possibilidade da redenção pela perenidade da obra arquitetônica, em um estilo despojado, que celebra estruturas de concreto aparente, sem adornos, e com formas geométricas ousadas. Um estilo que, junto com suas evoluções, acaba de ser proibido naquele país em edifícios governamentais, que voltam a exigir o estilo neoclássico endeusado pelo fascismo nos anos 30 e 40.

Prostitutas

Em meio à onda de moralismo machista, o prêmio de melhor atriz e melhor filme, com Anora, foi para uma obra que fala de uma prostituta, uma stripper, talvez a categoria mais desvalorizada, em um país em que, exceto em Vegas e poucas outras cidades, a atividade se constitui crime. E a atriz vencedora, Mikey Madison, dedica seu prêmio a essas prostitutas.

Brasil

Para o Brasil, a catarse nacional em uma torcida quase unânime, em uma onda de Copa do Mundo em torno da arte, do cinema, acende a esperança contra as ameaças de trevas, daqueles que consideram a cultura uma atividade supérflua, ou reduzida a uma postura alienada de reafirmação da dominação ideológica. Não, a cultura é o que o Brasil celebrou: a transgressão, a resistência, o talento, a visceral defesa de valores humanos e da liberdade.

Reflexão

Em pleno Carnaval, fora das festas oficiais, como em Rio Branco, em que a outrora liberdade dos blocos de sujos, dos protestos, da irreverência, foi contida pelo aparato oficial de um anódino “Carnaval da Família”, por grades, burocracia e vigilância moralista e política, o refresco cultural lembra que a voz e a manifestação do povo podem ser censuradas e amordaçadas, mas nunca apagadas.

Festa

Hoje, de alma lavada, o Brasil se reencontra um pouco consigo mesmo, com sua história. É o que se tem, por enquanto, e isso não é pouco, vale a pena ser celebrado.

Socorro Camelo é jornalista e escreve neste espaço as segundas , quartas e sextas-feiras.