Por Aline Pereira
Cheguei em Porto Canoa, no litoral de Aracati, Ceará, onde fica a casa da tia do Victor. Esse era um lugar especial para ele, um refúgio da infância que ele fez questão de me apresentar anos atrás. Ali, o mar era sempre próximo, e a calmaria parecia constante. Estavam comigo meus pais e nossos dois filhos, mas, mesmo rodeada de carinho, cada detalhe ao meu redor era um lembrete doloroso de que o Victor já não estava mais fisicamente presente, apenas duas semanas após sua partida.
Desde o primeiro momento, a emoção me dominou. A dor era tão profunda que sentia um gosto amargo na boca, como se minha alma rejeitasse o vazio deixado por ele. Respirar parecia um esforço enorme, e o choro fácil tornou-se minha única válvula de escape. Minha cunhada, sempre em contato, sugeriu que eu rezasse o terço diariamente, e assim o fiz. A oração trouxe um pouco de serenidade para mim e para as crianças, uma espécie de âncora em meio à tempestade que era a nossa realidade.
Quando vi o mar pela primeira vez ali, senti sua força avassaladora. Era um reflexo da vida, que muitas vezes nos conduz sem nos perguntar se estamos prontos ou se temos algo a dizer sobre o caminho.
Nas manhãs seguintes, notei a presença de duas águias que sobrevoavam a região. Elas vinham tão perto que, imediatamente, me lembrei da música que escrevi para o Victor, “Livre como um pássaro”: “Vi nele a força e a coragem das águias que têm sede de tudo o que a vida provoca…” Observar aquelas águias me trazia uma sensação de que ele ainda estava ali, de alguma forma zelando por mim.
As noites eram preenchidas por sonhos com ele. Cada um parecia revelar uma etapa de sua partida: cenas confusas, momentos de ternura e, por fim, uma mensagem que me trouxe paz sobre seu resgate espiritual.
Meus pais foram essenciais nesse momento. Eles cuidavam de mim com amor e insistiam para que eu me alimentasse e descansasse. Mas minha missão como mãe continuava, ininterrupta. Os meus filhos buscavam por mim com uma sede de atenção e carinho que, por vezes, me tirava do abismo da dor. Mantê-los próximos foi, de certa forma, minha salvação.
Ao entardecer, chamava as crianças para observar a dança das gaivotas, um hábito que o Victor e eu começamos a apreciar juntos neste último ano. Esses momentos simples aqueceram meu coração e me lembraram que, mesmo em meio ao sofrimento, ainda havia beleza na vida.
O mar parecia me purificar por dentro, enquanto o calor do sol trazia um conforto que eu nem sabia que precisava. Durante uma dessas tardes, escrevi uma carta a Deus, em busca de respostas para o caos que a vida havia se tornado.
Na véspera de retornar para Brasília, enfrentei a data que seria nosso aniversário de casamento. Eu sabia que seria um dia difícil, mas, com lágrimas e gratidão, revivi as músicas que marcaram aquela data e olhei as fotos do nosso casamento. No fim do dia, fomos ver o pôr do sol em Canoa Quebrada. Ali, senti Deus falar comigo. Ele me lembrou de Sua grandeza e me mostrou que, por mais que eu deseje o controle, a vida pertence a Ele. Mas também senti que, mesmo nos momentos mais difíceis, Ele nunca me desamparou. Desde a notícia do acidente do Victor, senti o apoio de amigos e familiares, que me carregaram nos braços para que eu pudesse continuar.
Com o coração ainda em pedaços, mas determinado, compreendi minha missão. Preciso cuidar dos nossos filhos com o mesmo amor e coragem que o Victor sempre demonstrou. E, no meio desse caminho, percebi que também preciso me amar e me cuidar. Foi isso que ele me ensinou durante nossos 20 anos juntos: a força do amor começa em nós mesmos.
A carta foi essa:
Carta para Deus
Querido Deus,
Eu sei que Tu és onipotente e cheio de sabedoria infinita. Não quero questionar Tuas decisões, pois sei que tudo acontece sob Tua vontade. Mas preciso abrir meu coração diante da dor que carrego.
A partida do Victor foi como um terremoto em minha vida. Tão abrupta, tão violenta, que sinto que meu coração ainda sangra. É difícil entender o porquê disso tudo, e confesso que, na minha pequenez, me sinto ignorante para compreender Teus planos. Mas sei que eles existem, mesmo que eu não consiga enxergá-los agora.
O buraco que ficou em meu peito é profundo, e só agora, depois de tantos dias e com o acolhimento do mar e da presença dos meus filhos, consigo respirar com um pouco mais de leveza. Ainda assim, a saudade pesa. Ele não era apenas meu marido; era meu companheiro, meu protetor, meu amor mais profundo.
Eu percebo, Senhor, que preciso me reerguer. Meus filhos me observam, minha família me apoia, e sei que minha tristeza pesa sobre eles também. Preciso encontrar forças para seguir, para honrar a vida que ainda me deste e a missão que me confiaste.
Mas, meu Deus, como é difícil. Peço força para viver sem ele, para encontrar alegria em minha própria companhia, para sorrir e ser luz para aqueles que dependem de mim.
Peço também que, onde quer que o Victor esteja, ele esteja em paz e envolto em Teu amor. Que ele possa ser meu guia espiritual, meu protetor e o protetor dos nossos filhos. E, se Tua vontade permitir, que um dia possamos nos reencontrar e reviver o amor que nos uniu tão profundamente.
Enquanto isso, ajuda-me, Senhor, a viver com propósito, a transformar minha dor em força e a seguir com fé. Que eu consiga honrar a memória do Victor não com lágrimas, mas com a coragem de viver uma vida plena e de amor.
Com toda minha gratidão e esperança,
Tua filha.
Aline Pereira é escritora em construção, mãe, e uma apaixonada por transformar o amor e o luto em poesia. Atualmente, compartilha as memórias de seu relacionamento de 20 anos e seu processo de reencontro consigo mesma.
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