Um problema de matemática com mais de cem anos foi finalmente resolvido, clamaram recentemente pesquisadores brasileiros. Mas, procurados pela reportagem, matemáticos familiarizados com a questão apontam possíveis erros na resolução e, consequentemente, afirmam que o 16º problema de Hilbert permanece sem resposta.
No final de agosto deste ano, pesquisadores da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) publicaram na revista Entropy, do grupo MDPI, uma investida -usando um método chamado GBT (teoria da bifurcação geométrica) para a solução de um dos famosos problemas de Hilbert.
Colocando em poucas linhas, em 1900, no Congresso Internacional de Matemática, em Paris, o matemático David Hilbert (1862-1943) propôs 23 problemas matemáticos, alguns dos quais permanecem sem solução. Um deles é o 16º, o problema de topologia (área da matemática relacionada à geometria) de curvas algébricas e superfícies, que, em sua segunda parte, diz respeito à topologia dos ciclos limite de sistemas dinâmicos.
O problema questiona o número de ciclos limite que um sistema de equações diferenciais ordinárias pode ter.
A reportagem procurou matemáticos para comentar a hipótese levantada pelos brasileiros. A reação foi de ceticismo, com afirmações de que a solução apontada pelos pesquisadores não é uma resolução para o 16º problema de Hilbert.
"O trabalho tem uma prova matemática irrefutável. Podem falar o que quiser, foi provado. Não há o que se falar mais a respeito disso", diz Vinicius Barros da Silva, físico que realizou seu doutorado na Unesp, do qual resultou a suposta solução para o 16º problema.
"O trabalho está colocado, ele é público", acrescenta João Peres Vieira, professor do departamento de matemática da Unesp, que assina, com Barros da Silva e o físico Edson Denis Leonel, também da Unesp, o trabalho. "As pessoas estão lendo, aliás, estão tendo um acesso grande de leitura. E, em cima disso, é que vai se validando o resultado, enquanto você não tenha nenhuma contestação."
A contestação, porém, já existe e foi publicada por uma dupla de matemáticos brasileiros, em um repositório preprint (ainda sem revisão por pares).
"De cara a gente consegue ver que não está correto", afirma Douglas Duarte Novaes, matemático da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que assina, com o também matemático Claudio Buzzi, da Unesp, a nota que contesta a suposta solução do 16º problema de Hilbert.
"Tem um professor de Barcelona com o qual estávamos conversando que falou que não passou do resumo [do estudo dos brasileiros], porque leu e viu que estava errado, que o resultado não era condizente com aquilo que é clássico, estabelecido e sabido [sobre o problema de Hilbert em questão]", diz Novaes.
"O resultado deles fala que para todo n 'é isso' que acontece. Então, para esse resultado ser falso, basta encontrar um n em que não vale", acrescenta Novaes, que com Buzzi apontou haver exemplos clássicos na literatura matemática que demonstram o erro da suposta resolução do problema secular. "Temos contraexemplos para o resultado em si, sem entrar no mérito do desenvolvimento das ideias deles."
Buzzi é da Unesp, assim como os pesquisadores que dizem ter solucionado o 16º problema, e diz que chegou a ser procurado por um dos autores, antes da publicação. Mas por questões de tempo, segundo ele, recusou-se a analisar o trabalho.
De acordo com Buzzi, ao tentar detectar onde está o erro, eles perceberam que os autores da suposta solução não usam a definição padrão de ciclo limite.
Os pesquisadores da Unesp que afirmam ter resolvido o 16º problema de Hilbert dizem ter tomado conhecimento do questionamento e que, em breve, responderão.
Publicação em revista do grupo MDPI
A reportagem questionou os pesquisadores da Unesp em relação à escolha do periódico Entropy, do MDPI. O grupo, que apesar de grande e responsável por diversas revistas, é visto com algumas ressalvas e cuidados por pesquisadores. O MDPI já foi listado em meio a periódicos predatórios -que, em linhas gerais, possuem baixos critérios de revisão e, a partir de convites e pagamentos, publicam estudos.
"Dizer que 'ah, porque a Entropy é uma avaliação rápida'. Eu discordo", diz Vinicius Barros da Silva.
A página inicial da Entropy destaca quanto preza por um rápido processo de publicação. "Publicação Rápida: os manuscritos são revisados por pares e uma primeira decisão é fornecida aos autores aproximadamente 22,4 dias após a submissão; a aceitação para publicação é realizada em 2,8 dias", diz o site.
Edson Denis Leonel, físico da Unesp que também assina o trabalho, diz que havia recebido um convite do editor da Entropy para publicar na revista uma revisão de mecânica estatística.
"Como a gente conseguiu finalizar esse trabalho [a tentativa de solucionar o 16º problema] em tempo, nós submetemos esse trabalho em vez de fazer a revisão. Foi um trabalho original, nesse sentido, que teve um tratamento relativamente célebre, comparado com outras revistas", diz Leonel. "Tivemos a satisfação de ter esse trabalho publicado por zero fee [pagamento]. Não pagamos absolutamente nada."
Os dados da publicação apontam que ela foi submetida ao periódico em 19 de junho deste ano e que, em 24 de agosto, já estava revisada.
É comum, no meio de publicações acadêmicas, que artigos passem longos períodos no processo de revisão por pares e que a publicação ocorra após inúmeros meses da submissão.
Apesar de apontar possíveis erros na solução do 16º problema de Hilbert, Novaes, da Unicamp, afirma que a atenção atraída pelo caso acaba servindo como uma forma de divulgação da pesquisa matemática brasileira.
A solução para o problema, porém, ainda parece distante, na visão dele. "É muito provável que não existam as ferramentas matemáticas para resolvê-lo. Pode ser que as ferramentas ainda estejam por ser desenvolvidas."
A ideia ressoa as palavras do próprio Hilbert. "A convicção de que todo problema matemático pode ser resolvido é um poderoso incentivo para o pesquisador. Escutamos dentro de nós o chamado perpétuo: Aqui está o problema. Busque a solução. Você pode encontrá-la pela razão pura, pois em matemática não existe 'não sei'."
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