Por Talita Montysuma
Certa vez, ouvi de um garoto de 12 anos que estava às voltas com a dificuldade de elaborar o luto e se despedir da infância e começar os ensaios da vida adulta que a adolescência traz, me diz: a gente morre para poder viver. E assim ele me marca profundamente, pois foi ele quem começou a tirar o véu da ignorância sobre mim mesma e passei a pensar com sinceridade sobre a minha finitude. E ao mesmo tempo, me fez ver que parte do meu trabalho é ser como Caronte, o barqueiro do submundo, que leva as almas para o mundo dos mortos, para juntar a Hades.
Digo isso porque todas as pessoas que escuto, estão nessa travessia de alguma forma, tentando ver o que dá conta. Deixar morrer e/ou para trás e seguir. Quem presta atenção na vida, já percebeu que na materialidade morremos somente uma vez, mas viver é diferente: vivemos todos os dias. Mas em determinados momentos a gente precisa renasce de novo, mas pra isso temos que ter a coragem de, quando esse momento chegar, se permitir morrer. É um rito de passagem que ninguém escapa.
Penso que dentre todos os ritos de passagens o que me fez pensar sobre a vida e morte foi o Roncó (é um quarto à parte dentro do terreiro do candomblé, onde ficam recolhidos os iniciados, que após cumprirem o prazo determinado são apresentados aos irmãos de fé e consagrados aos Orixás) pois li um artigo chamado “E o silêncio Nagô calou em mim”, que compara o processo com um grande útero. Achei a metáfora muito bonita, pois o sujeito se recolhe na clausura. “O corpo recluso, deitado sobre o eni, uma esteira, e sobre folhas, é um misto de repouso e ação. Entrega-se à grafia sagrada que sai de uma terra africana e pulsa nas veias, nas peles das pessoas daqui.”.
Ela, a Denise (vou chamá-la pelo primeiro nome. Não quero trazer ao texto ares universitário), diz que a passagem de “sujeito comum e sujeito santo” é marcado intuitivamente entre silêncio e som. Os Iaôs deixam fora do quarto santo, tudo que traz dessa vida até ali, cabelo e vaidade, pois sua cabeça é raspada, só bebem chá, só comem o que lhe é permitido e só falam com quem precisam falar. O resto é silêncio, pés descalços e trabalho no barracão. É trabalho sacerdotal, porque para se tornar digno de carregar um orixá, precisa renascer na humildade.
E a vida, o que é senão uma junção de vários Roncó e ritos de passagens? Nosso primeiro rito é ao nascer. Depois da concepção, desejados ou não, estamos ali sendo nomeado de alguma forma por alguém. E chega o dia, que pode ser alegre ou não, pode ser as duas coisas, inclusive, e a gente chora. E ali passamos a respirar sozinhos, grande responsabilidade, não é? Ai a gente vai crescendo e chegamos na primeira infância: o desfralde. Onde realmente percebemos que temos que respirar sozinhos, que controlamos nosso próprio corpo. Testamos os limites e começamos a sentir medo do bicho papão (solidão/angústia de abandono).
Na segunda infância, temos a calmaria da latência, ainda tentando entender o que faz sentido no mundo nomeado anterior a sua existência. É na adolescência que começa o primeiro grande Roncó: a reclusão adolescente, que se dá conta que respirar sozinho é também sustentar sua própria vida sozinho. E que o mundo, já nomeado, talvez mereça outros verbos e histórias. Mas, e agora? Quem nos guiará para o renascimento desse adulto que virá? Hoje, penso que o Tik Tok e outras redes sociais.
O que acontece quando o sagrado é profanado? Penso que coisa boa não vem, não porque os Orixás ou a vida sejam ruins ou outra coisa, mas por que existe consequências para as nossas ações. E o silêncio nosso de cada dia, como se fazer respeitar ou quando devemos quebrá-lo? Pois, diferente da religião que exige um tempo para essa preparação, o nosso particular fica a cabo do que a gente dá conta.
Depois de superada a adolescência, temos a faculdade, o trabalho, casamento, filhos, divorcio, filhos saindo de casa, casamento dos filhos, neto, muitos aniversários e a morte. Todas essas experiências, de alguma forma, nos colocam vez ou outra, a deitarmos de novo na esteira de ervas, se despindo do que a gente acredita que seja a gente (porque ouvi dizer que as vezes a gente está se preparando para um Orixá e na hora do renascimento vem outro imagina a gente desprovido das forças do universo). E ainda, para tentar nos tornar humildes para que outras experiencias e histórias aconteçam. E cuidado, pois quando isso é profanado coisas ruins acontecem, a gente pode virar outra coisa que não a gente. (Penso que no Roncó pode acontecer o mesmo).
Com carinho, dedico a Raquel.
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